domingo, 1 de agosto de 2010

Cenas Monótonas da Vida de Eva Bernstein


Cena I - A arte se sorrir para não ser inconveniente

Eva acorda às 5:46 da manhã pensando que já está atrasada. Se troca apressadamente, desliga o alarme e, quando vai preparar um café, repara no relógio do microondas e vê que ainda não é hora de acordar. Ela volta a dormir e só vai acordar novamente às 6:47, dessa vez ela está atrasada.
Durante o percurso de sua casa até a escola, Eva, acompanhada pelo pai, escuta alguma composição de Chopin enquanto tenta se manter acordada. Ao saír do carro, tropeça em uma falha na calçada, o que faz com que todos os seus livros caiam da sua mão diretamente em uma poça d'água.
Ela se senta na última fileira na terceira carteira do fundo e começa a anotar a aula de matemática. "Pi", "circunferência", "raio" e "área" são as únicas mediocridades que ela consegue escrever no seu caderno que não tem mais de duas páginas preenchidas, apesar dela já estar usando ele há sete meses.
No recreio, Eva passa doze minutos na fila da cantina e compra um pão de mel que está com gosto amargo. Senta-se para conversar com suas colegas, que não têm nada de mais profundo para falar que não de meninos, maquiagens, baladas ou quem foi que bebeu até vomitar no último fim-de-semana. Quando perguntam sobre sua vida amorosa, Eva simplesmente sorri e diz "Não gosto de ninguém."

Cena II - A arte de varrer para debaixo do tapete

A aula termina e a menina calcula que tem vinte minutos antes do seu pai chegar e decide sentar em um canto e acender um cigarro. Quando seu pai chega, oito minutos depois do esperado, estranha o cheiro de cigarro que as roupas de Eva exalam. Ele pergunta se está tudo bem e ela reponde com um gemido. Odeia que perguntem se está tudo bem. Obviamente não está tudo bem. Ele não entra na discussão.
O pai a leva para almoçar em um restaurante italiano. Sem muita fome, ela pede um prato de macarrão comum. Conversam sobre faculdade e Eva tem que ouvir novamente uma bronca sobre o quão importante é fazer uma faculdade e o porque ela não pode ficar viajando por aí. Pedem a conta e pagam o estacionamento.
Escutam Wagner até chegar na casa da mãe dela. Eva abre a porta de casa e chama o nome da mãe, mas ninguém responde. Vai até seu quarto, abre seus cadernos e checa as lições de casa. Um ato inútil, já que ela nem sequer se lembra da última vez em que fez lição de casa. Procura um filme nas prateleiras de casa e pega um DVD pirata do filme "Morangos Silvestres". Quase na metade do filme, sua mãe chega em casa com um homem desconhecido e reclamando que a filha está "vendo de novo essa porcaria sem sentido." A menina ignora os comentários da mãe, que leva seu convidado para a sala de jantar.
Ao fim do filme, liga o computador e checa seus recados no Orkut. 23 recados novos, mas ela não responde, apesar de já estarem acumulados há mais de duas semanas. Eva liga o chuveiro e toma um longo banho. Veste uma roupa sóbria e lê "O Estrangeiro" até sua mãe avisar que está na hora de ir para a sinagoga.

Cena III - A arte de rezar para livrar a consciência da culpa

Eva e sua mãe sentam em uma das últimas fileiras da sinagoga e, durante duas horas, ouvem o rabino cantar palavras em hebraico que não fazem sentido algum para nenhuma das duas. Durante essas tortuosas duas horas, a mente da jovem vaga por pensamentos sobre família, casamento, morte, filhos, sexo, culpa, inocência, e assim por diante. Ela não vê o mínimo sentido em frequentar aquele lugar, seguir aquela religião, conviver com aquelas pessoas. Quando era mais nova, teve a rebeldia abafada pelos pais, que viam os sentimentos de raiva e desprezo da menina como algo "normal para a idade". Já havia desistido de lutar contra sua situação infeliz, de tentar estabelecer qualquer relação com os pais e de ser ouvida. Eva era uma conformista aos quinze anos.


Cena IV - A arte de mentir para si mesmo
Não haviam se passado treze minutos desde a volta para casa quando a mãe de Eva saiu de casa rindo com o homem misterioso, que havia acabado com as cervejas e o presunto da casa enquanto elas estavam fora.
Sozinha em casa, ela busca em sua bolsa aquele cigarrinho de maconha que estava pela metade. Abre sua janela, e fuma até seus dedos começarem a queimar levemente.
Eva deita na sua cama ouvindo repetidamente a música tema de "A Lista de Schindler". Levanta-se, pega uma tesoura um tanto enferrujada no seu estojo e dirige-se ao banheiro.
Ela encara sua própria imagem no espelho durante vários minutos. Pega uma mecha do cabelo e corta. Pega outra mecha e corta. Os azuleijos do chão vão sumindo aos poucos, cobertos pelo cabelo moreno que cai sobre eles.
"Vai ficar tudo bem, vai ficar tudo bem."

3 comentários:

  1. Seu blog é muito bom, eu li tudo, juro! E confesso que me identifiquei muito com esse post. Um dos últimos que você postou, "Os Silêncios - a vida de um casal em seis partes" foi vc mesma que escreveu? Não sei se já leu mas me lembrou muito um conto da Clarice Lispector : "Os Obedientes". É muito interessante... tem os mesmo tema.De qualquer maneira, continue postando, você escreve muito bem! =)

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  2. Bell, obrigada pelo comentário!
    Sim, tudo o que eu coloco aqui (com exceção das músicas e algumas frases que são de outras pessoas) eu que escrevo.
    Não li o conto não, mas vou procurar! Obrigada pela dica e pelos elogios (:

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  3. Ok, foi um tanto estranho eu ler o seu conto. Porque, meio que assim, é quase a minha vida. Menos a parte de cortar o cabelo. :)
    Gostei pacas do seu blog. Principalmente, quando falas de filmes.

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