quinta-feira, 24 de junho de 2010

Les Enfants



          Paris, 13 de Abril de 1964.

          Inesquecível Martha,

          escrevo para justificar minha ausência em nosso encontro. Estava a caminho de Montmartre quando a vi caminhado sozinha. Sua pele branca com as sardas que tanto despreza (e que eu adoro) à mostra e seu cabelo, ah seu cabelo ruivo, a única cor que combina com uma dama de sua força. Todo mundo diz que você era bonita quando era jovem, eu vim para lhe dizer que, para mim, é mais bonita agora do que quando era jovem, eu gostava menos do seu rosto de moça do que esse que você tem agora, devastado. Suas feições envelheceram rápido, isso é verdade. Uma guerra, dois maridos, um amante e as festas. "Sra. Dalloway, Sra. Dalloway, sempre dando festas para encobrir o silêncio!"
          Nunca me esquecerei das noites de champagne e jazz naquele Brasil que parecia tão afastado do resto do mundo. Você e George, responsáveis pelos mais glamurosos bailes, eram a imagem do casal perfeito. E eu, um menino com meus vinte e cinco anos, não conseguia parar de admirá-los. Você era uma musa inatingível, uma deusa ruiva e virgem, tão superior a todos os outros (ou pelo menos se portava como tal). Tive a sorte de ser acolhido por vocês. "É nosso filho", me apresentavam jocosamente. Mas você sabia desde o começo que não era assim, não é, Martha? Seu medo de envelhecer a levou a enganar George com a história de que precisava fazer compras em Paris e deveria me levar como acompanhante. Foi nesse quarto, que você está enquanto lê isso, que cometemos nosso primeiro pecado. Eu me submeti completamente a você e, nesses dias de glória da cidade das luzes, fui o garoto mais feliz do mundo.
          Mas sonhos sempre são breves e, quando voltamos, você estipulou inúmeras leis burocráticas para nós. Infelizmente, minha ingenuidade não me permitiu cumpri-las, e George descobriu sobre seu "incesto". Então veio o fim da Guerra e o começo de outra, dentro de sua casa. Foi entre beijos e tiros que a vi pela última vez.
          Você se lembra do que me disse naquela noite em Montmartre, belle de jour? "Você tem muito a aprender; e eu, muito a ensinar." Eu aprendi muito, sim. Mas agora, anos depois, percebo que, apesar de suas feições terem envelhecido, você continua sendo a criança carente que se esconde atrás da máscara de mulher intocável. É por isso que peço para não me esperar nesse quarto. Eu não virei, não tenho mais nada a aprender.
          Porém não se engane: serás eternamente minha e estarás sempre comigo, nos olhos de nossa filha.

          De seu maior erro,

          Chéri

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